Crónica: A minha rua

Texto de Alice Vieira, em Jornal de Mafra

Moro nesta rua de Lisboa há mais de 40 anos.

Há 40 anos a minha rua tinha tudo.

Tribunais, hospital, hotéis, supermercados, restaurantes, lugares de fruta, a farmácia do Diamantino onde tudo se discutia, livrarias, drogarias, loja de ferragens, escolas de línguas, lojas de eletrodomésticos, uma tabacaria onde as minhas velhas tias iam falar de doenças, quiosques de jornais, e vários cafés — entre eles o ”Toninho”, que abria às 6 da manhã e encerrava para lá das 11 da noite e não fechava as portas em dia nenhum. Domingos, feriados, (incluindo Natal, 25 de abril e 1o de Maio) eram dias habituais de trabalho : portas abertas no mesmo horário.

O “Toninho” era a segunda casa de todos nós. Desde os tempos em que às suas mesas abancavam o D.António Ribeiro (que seria depois patriarca de Lisboa), Almada Negreiros, Dinis Machado, Dulce Cabrita, Raul Solnado e muitos outros.

Era um pequeno mundo.
Saía-se à rua e tudo estava à mão.

E todos olhávamos para a nossa rua na certeza de que outra melhor não haveria e que tudo aquilo seria eterno.

Um dia partiram os lugares de fruta. Custou, mas havia supermercado e não sentimos muito, a não ser a falta das piadas do Sr. Lopes.

Depois a livraria “Quadrante” fechou as portas e, durante anos, aquele espaço nunca foi devidamente preenchido: lojas de ninharias, abriam um dia e fechavam no seguinte. Por graça dizíamos que, desde a saída do Eduardo e da Maria Alice, aquela loja tinha ficado assombrada.

Depois o Diamantino largou a farmácia que rapidamente fechou.

E a D. Vera fechou a tabacaria.

E os quiosques desapareceram.

Mas a primeira grande machadada deu-se quando os tribunais foram daqui para fora.

Trememos ligeiramente , os cafés queixavam-se de menos clientela mas, mesmo assim, pensámos que tudo se iria resolver.

Mas machadada puxa machadada: o hospital fechou (e com ele o lar das enfermeiras), a drogaria fechou, o Sr. Mário das ferragens levou o negócio para outro sítio, a loja da Philips (passe a publicidade, que agora também já não serve de nada…) fechou, o Instituto Francês fechou, a livraria de livros ingleses em 2a mão fechou ( a sacaria de livros que, de vez em quando, eu lá ia entregar!)—e, de repente, o “Toninho” também fechou as portas.

Machadada final. E com grande estrondo.

As vizinhas aqui do bairro andam feitas baratas tontas sem saberem onde poisar.

Há dias fomos, digamos, experimentar um outro café aqui perto. Saímos de orelha murcha.
–Que é que lhe falta?—perguntou a Rosa.
–Faltam-lhe os 40 anos que passámos no outro…–respondi. Desistimos de procurar.

E há dias e dias em que não nos vemos. E à noite ficamos todas em casa.

E, de repente, a rua é assim uma coisa estranha para todos nós, donde inexplicavelmente sairam as nossas raízes. Uma rua igual às outras.

Ia eu esta manhã a pensar nestas coisas quando, de repente, vejo que na minha rua ainda falta mais qualquer coisa.

Eu explico : há anos que, num vão de escada, dorme um sem-abrigo. Nós nunca vimos o sem-abrigo mas muitas vezes lhe deixamos alguma fruta. Porque eu garanto que deve haver muito poucos homens que de manhã deixem o quarto tão arrumado como este deixava o vão de escada.

O colchão direitinho, a manta muito bem estendida, por cima às vezes a ingenuidade de um ou dois bonequinhos de borracha tipo Strumpfs, o chão impecavelmente limpo—e tudo protegido por grandes cartões, em jeito de parede.

Dava gosto ver.

Mas o que é certo é que nunca o vimos. Se eu passava por ali de manhã muito cedo a única coisa que via era um vulto dentro da cama, mas claro que não ia lá espreitar…A partir das 8 da manhã já ele tinha ido à vida.

Ontem deixei-lhe duas maçãs em cima da cama. Hoje, tinha desaparecido.

O vão de escada tornou-se novamente num vão de escada normal, o chão impecavelmente limpo e nenhum rasto do colchão ou da manta ou dos cartões.

A minha rua está tão descaracterizada e tão triste que já nem um sem abrigo aguenta.

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